sexta-feira, fevereiro 29, 2008
Eu moro em uma casa. Na frente da minha casa tem um jardim fechado por um portão, onde guardamos o carro. Do lado de fora do portão, já na rua, ali num canto, tem um murinho. Esse murinho é disputado por passantes que querem dar uma descansadinha, pedintes que querem fazer uma pausa, crianças que querem aprontar e mil outros tipos de pessoas com diferentes fins.
Nos últimos quatro dias o murinho foi ocupado por dois habitantes: um homem maltrapilho e sua sacola. O homem tem uma das pernas amputada bem no alto da coxa. Ele não pede nada, a não ser que a minha mãe lhe dê um pouco de água, às vezes, quando ela está entrando da rua. Nesses quatro dias ele está sempre no mesmo lugar, quase sempre na mesma posição. Ele não foi visto comendo. Ele não foi visto falando com outras pessoas. Durante a madrugada, minha mãe diz que ele vai pra uma lanchonete vizinha, dormir embaixo do toldo. Eu não sei, não vi.
Ontem à noite, quando fomos guardar o carro, minha mãe pediu licença pra tirar as muletas dele que estavam apoiadas no portão que seria aberto. Ele respodeu: pois não, senhora. "Pois não, senhora"?
Depois que ouvi isso, reparei que ele não tem modos rudes. Ele é até delicado no pouco trato que tem com a gente.
Aí eu fico aqui pensando: o que aconteceu com esse cara?? Faz quatro dias que essa criatura está parada num mesmo lugar. Estático. Sem nem falar nada além de "a senhora pode me dar um pouco de água, por favor". Quatro dias!
Tá me dando uma angústia de ver o estado desse homem que vocês não têm idéia. Tô vendo essa angústia na cara da minha mãe também.
Eu já imaginei as histórias mais horríveis de como ele perdeu a perna e, por causa disso, tudo mais que ele tinha, tendo que ir morar na rua. Parece que ele não tá mais nem aí pra vida dele. A impressão que eu tenho é que pra ele não faz diferença. Nada.
Hoje, por dois segundos, vi nele o meu avô, que morreu porque decidiu morrer, porque pra ele não fazia mais diferença. Nada.